O novo Ashram minimalista

terça-feira, 31 de agosto de 2010

U-TOPIA, U Street

Pede dois angus burgers e duas Sierra Nevadas (strong ale) e para ali fica a desbobinar a sua vida de venturas, aventuras e desventuras, enquanto eu devoro a minha metade (a hora é tardia). Tem 65 anos e recorda o seu activismo dos sixties, de como estava presente no discurso "I have a dream" (estava longe, ouviu mal, achou o Luther King Jr. demasiado enfático e com a cadência pomposa de um evangelista, só mais tarde se comoveu a ler o texto). Como bom "liberal", vê fascismo em todo o lado e eu nem me atrevo a avançar uma opinião minha. Divorciado há demasiado tempo, namora com mulheres da idade das filhas, e frequenta bares que manifestamente já há muito deveria ter deixado de frequentar. Não importa, vende saúde e revela-me, com o ar mais convicto possível, que tenciona pedir a reforma aos 90 anos.
O DJ residente arranca com um sampling furioso e estridente, ao mesmo tempo que a iluminação cede perante a feérie estroboscópica. Pega do telemóvel, liga à filha mais nova e, empunhando o aparelho, aproxima-se das colunas ("queria que ela ouvisse, partilhamos este gosto musical; sinto muito a falta da companhia dela; mas já falei de mais a meu respeito", remata enquanto mistura a Sierra Nevada com um copázio de bourbon e saúda efusivamente, com excessiva familiaridade, uma barmaid).

Um sentimento muito yankee (vê-se por todo o lado)

Canção do bandido: Johnny Halliday interpreta Julio Iglesias



Com perdões àqueles que julgavam o Ashram imune a ataques de foleirice.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A obesidade pseudo-libertária



Alguns dos comentários que tenho lido sobre a questão das crianças obesas e sobre a responsabilidade dos pais na prevenção dessa obesidade deixam-me muito surpreendido – porque agitam uma bandeira libertária até ao absurdo, muito para lá do que pode fazê-lo um libertário genuíno. Se não temos colectivamente o direito de chamar esses pais à responsabilidade por considerarmos que se trata de questão privada – então pergunto com que direito suspenderemos o poder paternal das Testemunhas de Jeová para realizarmos transfusões de sangue nos seus filhos menores (e podíamos ir mais longe ainda, perguntando com que legitimidade imporemos então a escolaridade obrigatória, ou com que direito retiraremos o poder paternal em casos manifestos de toxicodependência dos progenitores).
Dirão: e com que arrogância presume de decidir o que é um libertário "genuíno"? Passo, e prefiro remetê-los para o recente, mas já clássico, artigo de Cass Sunstein e Richard Thaler, "Libertarian Paternalism Is Not An Oxymoron" (AQUI).

As ironias auto-referentes de um libertário (un vrai, un dur, un tatoué)


Quando cantam, parece que estão sós.


domingo, 29 de agosto de 2010

Chilreios


Quando somos crianças o mundo faz sentido porque acabámos de descobri-lo. Quando somos crianças a realidade não é refractária aos nossos sonhos, e por isso povoamos a realidade de ursos falantes e de elefantes voadores que são mais bonzinhos e perfeitos do que os adultos. Quando somos crianças somos omnipotentes porque somos capazes de transitar do choro ao riso apenas com um carinho, com uma macacada ou até com umas cócegas. Quando somos crianças quem manda no nosso mundo somos nós, porque circunscrevemos o mundo ao espaço da nossa atenção e dos nossos refúgios; e rejeitamos eficazmente o resto, intimidando os adultos com as nossas birras e os nossos protestos. Permitimo-nos a crueldade porque não sabemos senão ser autênticos; permitimo-nos a impertinência porque sem ela seríamos insignificantes; somos caprichosos porque essa é a única força que nos resta num mundo que se rege pela força; somos ruidosos porque somos jovens mamíferos vulneráveis que reclamam protecção e alimento. Ao longe soamos como passarinhos que chilreiam pelas mesmas razões do que nós.

Outra nortada


Falharemos este ano o nosso habitual encontro na confluência da R. Florêncio Granate e da R. do Norte.
Infelizmente, desta vez saberei que não é para o ano que poderei emendar esta falha; saberei mesmo que essa falha já não vai a tempo de ser emendada, e que eu viverei com a amargura de não ter podido prolongar até ao seu horizonte natural tudo o que esses encontros significavam para mim.
E havia ainda tanto para dizer.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Lapidar

No Korean War Memorial em Washington DC:

"FREEDOM IS NOT FREE"

Lobo Bobo

Finalmente percebi o que é que Lobo Antunes disse que irritou os valentões que querem intimidá-lo.
Mas aquelas mistificações sobre chacinas não são perfeitamente inócuas, de inverosímeis que são?
Ou será que não existe, nos registos da tropa, forma de desmentir, com números e nomes, o que ele diz? Não será possível encontrar ao menos um camarada do mesmo batalhão ou companhia capaz de contradizê-lo?
Partir-lhe o focinho, por sua vez, o que é que provaria? Não é verdade que os bandidos mandam partir o focinho aos cúmplices que se chibam?

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Ainda a guerra colonial

Agora que se reabre fugazmente o dossier (perdão, dossiê) da guerra colonial, não posso deixar de lembrar a mais judiciosa observação sobre esses tempos, da autoria do sempre sagaz Henry Kissinger, que caracterizava nestes termos sintéticos o problema quase-paradoxal da assimetria básica numa guerra de guerrilha: ao guerrilheiro basta não ser derrotado para averbar uma vitória; já para o exército convencional a ausência de vitória representa uma derrota.

O império do termos

A cultura yankee está totalmente rendida à cultura do "termos" – do copo isotérmico que todo o cidadão vaidosamente empunha em qualquer ocasião. Na rua, passam aos magotes viciados de cafeína ostentando os seus copázios de mistela. Temos uma reunião, uma conferência – e os presentes sorvem ruidosamente, e com deleite, um qualquer derivado de café de denominação difícil e imaginativa. Olham para mim com estranheza, decerto atribuíndo a um lapso persistente da minha parte a ausência do bendito mini-balde de café com tampinha e palhinha. Imagino-os de "termos" em punho a irem dormir, ou a entrarem na casa de banho.
Com horror do vácuo, a superação de um vício é imediatamente acompanhada da irrupção explosiva de um outro. Sinal do progresso, antes a cafeína do que o tabaco, entretanto totalmente banido (ou clandestino).

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Mr. Jansenist Goes to Washington

Uma temporada longe da piolheira permite uma relativização e um distanciamento valiosos – uma espécie de banho lustral para se poder ir em frente.

Contra o Lobo Antunes, Marchar, Marchar!

Uns tropas andam por aí a anunciar que "partem o focinho" a Lobo Antunes – tanto quanto percebo porque ele coloca em questão o comportamento da tropa no ultramar.
Os que se portaram bem por lá viverão quando muito na recordação e no ressentimento pelo desfecho – e não andam aí a tentar, num espúrio desagravo, esfregar a honra no "focinho" de um septuagenário canceroso, cobrindo-se de ridículo e tornando-se suspeitos da (mais uma) reles cobardia. E isso porque nenhuma versão de que se passou – mais a mais assumidamente romanceada – os melindrará, até porque os mais inteligentes perceberam que o protagonismo pretérito não os converte em proprietários do correspondente registo histórico.
Dos demais, dos idiotas que passaram a pontificar na tropa desde o glorioso 25A, recordo os meus tempos de combate direitista em que, ao tom do

Oh Laurindinha, vem à janela. / Ver o teu amor, (ai ai ai) que ele vai p'ra guerra.

Entoávamos:

Ó Zé Povinho, vem à janela. / Anda ver os tropas (ai ai ai) a fugir da guerra / Anda ver os ricos oficiais / A darem a vida (ai ai ai) nos mares de Cascais

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A/C JG: Sim, cantei



No trecho acima, os solistas éramos eu e a Alexina (como vê, o meu anonimato não é matéria de dogma…)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Rumo a norte

Férias, para mim, não são este desterro em paragens demasiado quentes e modorrentas.
Sinto a falta do vento, das ondas, do poente chapado no mar, da neblina matinal e da nortada vespertina; do frio nos ossos lentamente retemperado pelo Sol, da calçada irregular, de uma mistura (em subtis percentagens) de gaivotas e andorinhas, de nuvens acastelando-se no mais impiedoso e romântico dos oceanos; do chilreio das crianças, do cheiro a café, a maresia, a frango, a maresia, a peixe seco, a melão, a maresia e a pão quente, dos rituais pausados das "férias à antiga", da contemplação das memórias de traineiras que já não regressam mas que ainda visualizamos a deixarem o seu rasto de limos pela areia; de uma outra noção de tempo, sem relógio, guiada apenas pelos cambiantes de luz e pelo fôlego das marés; e, mais importante, da memória do abraço de familiares e amigos que connosco arrostavam estoicamente esses verões contingentes e caprichosos, preenchendo em conversas (também "à antiga") as irrupções da invernia, com ou sem vigorosas marchas rumo a Norte, sempre ao vento, um vento implacável, um vento vivo.
São memórias demasiado doces de verões salgados para que possam contra elas competir as torrentes de SPAs, Resorts e Aquasplashs betonados, ajardinados e sem alma com os quais hoje se preenchem, numa sucessão sem referências e por isso não-memorável, os meus verões de fachada, do lado errado do Cabo da Roca.

Já fui viciado neste trecho (que ouvia em loop em longas viagens de carro)


terça-feira, 17 de agosto de 2010

EFEITOS SONOROS: Uma música que me rejuvenesce vários decénios


EFEITOS SONOROS: Uma música que me aumenta a esperança


EFEITOS SONOROS: Uma música que me faz sentir sofisticado


EFEITOS SONOROS: Uma música (e um filme) que me enchem de nostalgia


Kant (3)

"Relativamente à parte da criação que é viva apesar de desprovida de razão, a violência mesclada de crueldade no modo de tratar dos animais é ainda mais profundamente contrária ao dever do homem para consigo mesmo, visto que isso entorpece no homem a simpatia para com o sofrimento daqueles, enfraquece e paulatinamente aniquila uma disposição natural, muito proveitosa para a moralidade na relação com os outros homens – ainda que, entre outras coisas, seja consentido aos homens matar os animais de uma forma célere (sem tortura), ou impor-lhes um trabalho (já que os próprios homens têm que se lhe submeter) na condição de que ele não exceda as suas forças; em contrapartida há que condenar as experiências no decurso das quais os animais são martirizados por meros objectivos especulativos, quando se poderia atingir os mesmos fins sem recorrer a elas" - Immanuel Kant, Die Metaphysik der Sitten, II. Metaphysische Anfangsgründe der Tugendlehre

Kant (2)

"Os vícios emergem geralmente da violência cometida contra a natureza pelo estado civilizado, e no entanto o nosso destino de homens é o de sairmos do estado natural de barbárie inerente à nossa animalidade. A arte perfeita regressa à natureza" – Immanuel Kant, Über Pädagogik

Kant (1)

"Porque o facto de ele possuir uma razão não o eleva nada, quanto ao seu valor, acima da animalidade, se ela não deve servir-lhe senão para aquilo que, nos animais, ressalta do instinto" – Immanuel Kant, Kritik der praktischen Vernunft

Cícero

"Que prazer pode um homem civilizado retirar do espectáculo de um fraco ser humano a ser dilacerado por um animal poderoso, ou de um esplêndido animal a ser trespassado por uma lança?" – Marco Túlio Cícero, Ad Familiares, Scr. Romae a.u.c. 699. (= 54 a.C.)

Ainda sobre as touradas: o problema da compaixão selectiva

No seu excelente livro sobre os "executores voluntários", Daniel Goldhagen refere, no início do Cap. VIII, o caso do Major Trapp, do Batalhão de Polícia 101 (o original verídico e documentado para alguns dos mais atrozes episódios recriados nas Bienveillantes, de Littell), que, tendo já averbado mais de vinte mil mortos na sua orgulhosa Judenjagd (sem poupar sequer as crianças), um dia chora por ter que executar, em represálias, alguns reféns polacos não-judeus.
Tinha sido condicionado a desumanizar os judeus, que para ele e para os seus homens eram portanto caça livre. Não tinha sido condicionado da mesma forma para as populações não-judias dos países ocupados, pelo que a ordem de fuzilamento mexia profundamente com os seus sentimentos.
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Sem muita ênfase, Goldhagen classifica a situação como de "compaixão selectiva".
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Aqueles que conseguem estabelecer fronteiras nítidas no sofrimento são capazes das piores brutalidades tanto para lá como para cá dessas fronteiras: é uma advertência que surge nítida, por exemplo, já em Marco Túlio Cícero, e que Immanuel Kant celebrizou com a ideia de "deveres indirectos" para com os animais não-humanos. A nossa moralidade, ou se quisermos a nossa "humanidade", afere-se pelo modo como a nossa compaixão se espraia até aos confins do sofrimento, sem estabelecer demarcações. Aquele que assiste com deleite a uma tourada, aquele que não se condói com a fome de um cão, aquele que não se revolta contra a pancadaria com que se "mói" a "teimosia" de um burro – está já a demonstrar, por muito pouco que tenha a consciência disso, a sua capacidade de compaixão selectiva, a sua capacidade para se insensibilizar a formas nítidas de sofrimento.
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Aqui alinho sem hesitar com Immanuel Kant: nada há a impedir que esses que demonstram compaixão selectiva para com os não-humanos o façam também com os humanos – porque é sempre e em todos os casos de sofrimento, de um contínuo de sofrimento, que se trata.
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Só por condicionamento cultural (suprema perversão) isso pode acontecer. Uns chamam em seu apoio a tradição, e julgam que a tradição é um bom argumento. Pois foi também por apelo a uma tradição, de "pureza de raça", incessantemente reiterada, inculcada nos espíritos, glorificada e mitificada, que se iniciou o processo que culminou, em Outubro de 1942, em Kock, a norte de Lublin, na Polónia, com as angústias selectivas do Major Trapp e dos esbirros do Batalhão de Polícia 101.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Acordar assim... (tm) com dobragem em castelhano para ser ainda mais sensacional...


Mais peripécias de FJV...

(retirado do excelente blogue ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA, AQUI)

domingo, 15 de agosto de 2010

O poder redentor da sinceridade

Há uns anos lembro-me do choque provocado pelo Maus de Art Spiegelman: o Holocausto em BD? Os judeus como ratos, os alemães como gatos, os polacos como porcos, os americanos não-judeus como cães? Não seria o cúmulo da inconveniência, do mau gosto, lidar dessa maneira com aquela horrível tragédia? E no entanto, ao ler Maus, havia para mim algo de hipnótico, de arrebatador na sua elementaridade poética, algo de primordial, algo de radicalmente respeitador.
No calor das discussões acabei a ler uma recensão de William Hamilton (New York Times Book Review, 7/12/1986) que remata a sua apreciação da leitura de Maus desta forma que eu acho sublime – talvez o mais sublime remate de todas as recensões literárias que até hoje li:

"I felt the shiver I remember feeling during one of Duke Ellington's jazz masses in San Francisco's Grace Cathedral when a dignifed old tap dancer began his part in the service on the solemn flagstones. The jazz mass was so unlikely to begin with – and when it came to include a tap dancer, anything seemed possible. It showed all present how any way anyone can find to express spiritual tragedy and triumph sincerely seems sacred".

Uma coisa leva a outra: ratos de cidade v. ratos de campo


O melhor momento da primeira Pantera: Fran Jeffries em "Meglio stasera"


sábado, 14 de agosto de 2010

Desconcerto e incêndio

Enquanto a mídia (é assim que se escreve agora?) se multiplica na exibição das balofices de jovenzitos sopradotes que vieram para conquistar o mundo, é refrescante ler e reler as enxutas palavras de sabedoria de Ferreira Fernandes sobre a bombeira voluntária recentemente falecida. Infelizmente, passadas as palavras, o mundo está mesmo à mercê desses peralvilhos da metrosexualidade ideológica, dessa versão pós-moderna do crisóstomo da banha da cobra. O mundo continua desconcertado; ou continua "fantástico", como trinariam esses garnizés que se pavoneiam, muito oferecidos, na ágora.

Vieille et nouvelle cuisine

Quando nos pomos a contar as modas pelas quais já passámos é que nos damos conta da nossa profundidade temporal. Há uns dias lembrei-me da ascensão e queda dos queijinhos frescos, da manteiga de alho, do Trina de maçã, das couvinhas de Bruxelas, do tomate-cereja e da amarguinha a rematar os jantares; noutro registo, a salada de fruta tropical ou o Campari tónica como aperitivo, a sopa de beterraba e as ubíquas natas, a rúcula, o arroz árabe, os pimentos piquilhos, a cerveja Corona, o tsunami culinário de feijoada brasileira e de tudo o que era brasileiro, e ingerido a peso – com muita maminha e cupim propostos aos comensais com aquela técnica de vendas agressiva e que se tornou inolvidável. Que descansem em paz.
Alguma coisa ficou: os agridoces, aquela mania germanico-indiana de juntar algo adocicado aos pratos principais, a mostarda de Dijon, os vinhos alentejanos (passada a euforia inicial com tudo o que fosse alentejano e de coentrada, coisa dos anos 70 e 80), o vinagre balsâmico, a mousse de manga, e é claro, aquele embuste imorredoiro que é o "porco preto", de que se descobriu recentemente os "secretos".
Mais recentemente ainda a já defunta fondue, que tanto trabalho poupava aos cozinheiros, foi substituída pela moda do sushi e variantes. E as sobremesas conquistaram para elas pratos enormes, centrados numa minúscula bola de sorvete rodeada de amplos riscos mais ou menos perpendiculares e garridos. Não esqueçamos o azeite no prato para demolharmos o pão (poderoso emético), digno sucessor daquelas coisas "al ajillo" que por cá apareceram recrismadas de "à guilho", e das novas apresentações de tudo e mais alguma coisa em copinhos e pipetas, com aquelas colheres com que se mexe o café na turística dos aviões.
Já sei que comermos é deixarmo-nos enganar sugestionar voluntaria e alegremente, senão bastavam cantinas e malgas de arroz. Mal não faz, irmos evoluindo nas manias e nos gostos, em direcção à super-potente emulsão molecular: e como exercício de retrospecção é fascinante, conquanto algo deprimente – mas aí a culpa não é dos petiscos, é da mala pata negra da idade.

As Perseides (ver em full screen)


sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Illic sedimus et flevimus: um momento órfico



Já outrora exprimi por aqui a minha dívida de amizade para com Domingos Duarte Lima. Pela sua liderança entrei nos domínios mágicos que iam de Palestrina a Bruckner, e entre nós desenvolveu-se uma fugaz mas intensa amizade – que poderia ter-se tornado uma sociedade duradoura se ao menos eu tivesse aderido ao PPD, coisa de que não fui nem seria capaz. Estive no primeiro casamento dele, e relatei já em tempos a pitoresca viagem até Fátima com o velho Prof. Cavaleiro de Ferreira. Depois fomo-nos afastando sem qualquer motivo, pela inércia própria do destino e da rotina.
Vi-o subir muito alto e cair de muito alto, como o camoniano "perdigão", e é sempre com o coração pequenino que vejo o nome dele regressar à ribalta, a arrostar todas as fúrias do burgo.
Desta vez as insinuações foram longe de mais, e só espero que ele, inteligente e hábil como é, não se escude naqueles artifícios amaneirados com que os patifes deste mundo aprenderam a viver na impunidade. No lugar dele prescindia de garantias e presunções e segredos profissionais e trazia tudo a público, tudo ao detalhe, com todos os nomes e todas as implicações; acossado que está, receio que não disponha de muito mais opções ou de espaço de manobra para se livrar da ignomínia mais sórdida e concertada que novamente se acastela contra ele – as fúrias farejam o medo, segui-lo-ão impiedosamente pelas vielas desta babilónia meretrícia da maledicência e do espírito de matilha (a mesma de que fugíamos musicalmente, soerguendo-nos colectivamente aos acordes divinais do "Super Flumina" de Palestrina).

A santificação da cena literária contemporânea

A cena literária "high-end" julga-se prisioneira da esquerda, mas isso só pode ser ou um equívoco (daqueles que alguma idiotice paranóica de extrema-direita costuma cometer quando toma tudo por comunista) ou uma vontade de ofender uma tradição de esquerda que, por um breve momento histórico, ainda nutriu ideais e se guiou e sacrificou por eles.
Essa cena está antes refém dos seus gostos "radical chic", a convicção "cristã-progressista" de que é possível o melhor dos dois mundos, o coração à esquerda e a carteira à direita – uma aparência de que se é capaz de combater por ideais quando se tem garantida a classe executiva e a suite num cinco estrelas, o contrato milionário e o paraíso fiscal nas Canárias a apoiarem a aparência de desprendimento, de solidariedade, de desprezo pelo dinheiro.
A cena literária tornou-se tão acomodada e decadente e hipócrita como a cena das "estrelas do rock" com os seus "Live Aids", antes de a tecnologia "peer-to-peer" minar todo esse mercenarismo complacente e traficado. Tornou-se cobarde, agitando os pendões da liberdade e da contestação apenas quando constatou que isso era seguro e lucrativo – respondendo à amnésia romântica de um público lorpa e ávido de "lideranças culturais", e arregimentando em seu apoio um panteão de pensadores genuinamente independentes e corajosos – mas todos convenientemente já mortos.
Nalguns oportunos (comercialmente vantajosos) momentos de auto-crítica, a cena literária remete ainda para um saudosismo postiço, lamentando os tempos presentes e procurando autoentrincheirar-se com fogo nutrido contra a nova concorrência – invariavelmente crismada pelos bonzos "incumbentes" como literatura "light", "low-end".
Evoca-se uma "época dourada", de preferência não muito distante (para se poder tirar ainda proveito dos direitos de autor), reescrevendo a história cultural à custa da tal "amnésia romântica": nas vestes de profetas irreverentes aparecem aqueles que a memória recorda ainda como fariseus petulantes invariavelmente dedicados ao servilismo e à auto-promoção, as obras-primas de agora são encomendas de "nesca-literatura" que monotonamente exploraram a "short tail" do "star-system", ou seja a visibilidade de nomes "consagrados" (esta é a palavra-chave) junto de leitores acríticos e acarneirados, e tudo ressuma, a observadores não-desmemoriados, à "via dolorosa" que levou à presente confusão circense entre o genuíno e o berrante, à confusão entre mérito e celebridade.
Mas o pior de tudo é que, em jovem, conheci uma outra geração de "cena literária" que ao menos gozava com a sua própria hipocrisia "highbrow", que jogava a cartada da "esquerda-caviar" com deleite, com ironia, com genuíno desprezo pelas massas – com perfeito "tacitismo ironista", tudo rematado em cocktails repletos de subentendidos cúmplices e de "insider jokes". Parece que a ironia se perdeu, e o gozo com ela, e que os sumos-sacerdotes da nova cena literária são tão crédulos que se tomam infinitamente a sério e caíram na armadilha da auto-mistificação, infinitamente replicada e reverberada nos seus fóruns e nas revistas de especialidade com que legitimamente procuram glorificar o seu mester. Uma qualquer "Lei de Gresham", ou uma "entropia de ruído", ou a "long tail" da democratização cultural, privou-os aparentemente da capacidade de detectarem como plástico o plástico que vendem.
É isso que aprisionou a cena literária, e não a esquerda – são quando muito companheiros de calabouço, perdida que está em ambos essa capacidade de distanciamento irónico, entregues que estão ambos às limitações de crentes sinceros na sua idolatria auto-poiética.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

"Iliteracia" económica: um exemplo gritante

As despesas em saúde em Portugal (8% do rendimento) são as mais altas da EU. (LER) 
Ninguém é obrigado a dominar conceitos básicos de economia, mas acho que alguma "literacia" nestes domínios deveria ser requerida a candidatos a jornalistas. No caso, o singelo conceito de "elasticidade" (tanto a elasticidade-preço como a elasticidade-rendimento).
As despesas em saúde são muito inelásticas: logo, se o PIB per capita português fosse o dobro, as nossas despesas seriam provavelmente 4% do rendimento. Get it? Podemos estar a gastar proporcionalmente mais. A questão é se estamos a gastar absolutamente mais.

Speak Low, o "Bent Remix" de Billie Holiday cantando Kurt Weill: hipnótico!


quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A realização de um sonho


Tinha que ser inventado: ao cinzentismo passivo dos Guides Michelin sucede agora o luxuriante e user-friendly "Guia American Express", Rotas por Descobrir / França.
Um sonho para o "armchair traveler", como eu gosto de ser. De Albi a Rocamadour (passeio # 16) e de Carcassonne a Montségur (passeio # 19) encheram-me logo as medidas - e as recriações pictóricas, literárias e historiográficas dos dramas de Albigenses e Cátaros, respectivamente. Mas a crème de la crème é o passeio # 18, sete dias de Collioure a Saint-Jean-de-Luz, correndo de ponta a ponta os Pirenéus, com direito a pernoita no Pic du Midi, devoção peregrina em Saint-Jean-Pied-de-Port, momento ecologista no Lac de Gaube e momento ciclista no Aubisque e no Tourmalet. Um gozo indizível.
Os grandes livros são os que fazem sonhar, não têm que ser os escritos por uma clique literária.
Por mim, imagino-me já na estrada, num descapotável de quatro lugares à saída de Collioure, rumo ao poente…

Conto moral

Tinha que acontecer: o trabalho da algumas semanas guardadinho numa hard drive externa, uns dias fora sem um backup decente, a hard drive cai ao chão… e não há remédio, dizem os especialistas.
Há remédio, que é o da resignação. Vamos lá voltar ao ponto em que estávamos há umas semanas (ou, como diz a bimbalhada regurgitante de redundâncias, "umas semanas atrás").

domingo, 8 de agosto de 2010

Da PVDE, orgulhosamente

Há uns dias uns bloguistas acusavam outros de representarem a nova PVDE.
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Lembrei-me imediatamente do meu avô materno, que foi da PVDE, um santo homem de que conservo as mais doces memórias.
Fora combatente na Flandres com o CEP (aos 18 anos!) e ao regressar enveredou pela carreira das armas.
As incursões monárquicas tomaram em Chaves, a sua terra, tonalidades de guerra civil, reforçando nele as convicções republicanas (as clivagens e ódios em torno desses episódios perduraram muitos decénios, e ainda há hoje localmente historiadores "revisionistas", a remexerem nesse capital de ressentimento). Depois seguiu-se a bandalheira que é sabida, e que nem poupou, em sinistras vendettas alfacinhas, a vida a alguns dos políticos transmontanos.
Imagino o júbilo com que o meu avô aderiu ao movimento do 28 de Maio – um movimento que não apenas se apresentava como regenerador e redentor, visando pôr termo à bandalheira "democrática" (sem questionar o ideário republicano), como ainda era liderado por camaradas de armas, "veteranos da Flandres" como ele.
Não recusou ao Estado Novo nenhuma das tarefas de que o incumbiram, aqui e no Ultramar. Viveu honradamente; não enriqueceu; morreu no amor dos seus e no temor a Deus, que o poupou, por quatro anos, de assistir ao 25A, o desmoronamento de tudo em que ele acreditava, de tudo aquilo que ele modestamente ajudara a edificar.
Lembro-me de um primo meu, herói de guerra, ter saído directamente da cerimónia em que recebera a Torre e Espada para casa do meu avô, a receber a bênção dele.
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Os anos da PVDE consistiram na patrulha da fronteira transmontana, numa época especialmente melindrosa dada a situação em Espanha e dada a carência económica nos dois países. Não sei que género de violências anti-democráticas o meu avô terá cometido, se é que as cometeu; algumas chibatadas e coronhadas em contrabandistas mais ousados, certamente; creio que nada com que encher de esqueletos o armário familiar. Sei que eram patrulhas a cavalo que duravam semanas, e que companheiros de jornada evocavam, muitos anos depois, como à noite se retemperavam, nas aldeias em que se aboletavam, com opíparas pratadas de batatas cozidas (pouco mais havia nesses tempos difíceis).
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Era muito mais patriota do que eu alguma vez serei, e nunca colocou em dúvida que travava o bom combate, que agia pelo bem comum, que servia desígnios históricos colocando as suas forças ao serviço da Lei, e contra aqueles que, no seu espírito, queriam por palavras ou actos (voltar a) comprometer o futuro da Nação. Nunca teria percebido, estou certo, este distanciamento cínico com que um neto dele despreza, ou é indiferente a, quase tudo o que é português (com honrosas excepções). Talvez só me perdoasse tal degeneração aparente como reacção ao rescaldo do 25A.
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Foi da PVDE.
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De vez em quando buscamos no sedimento do nosso impudor congénito alguns pedregulhos para arremessarmos, e esse da culpa colectiva e retroactiva por pertença a uma organização policial, uma monstruosidade jurídica com que o revanchismo abrilino ornamentou a própria Constituição, é decerto o mais acerado e fétido dos pedregulhos – é uma vergonha jurídica e moral.
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Um dia um Daniel Goldhagen qualquer explicará que essa demonização da PVDE, e da PIDE/DGS, não passa de uma ínvia forma de exoneração colectiva, por atribuição "concentrada" de males que não podiam senão residir em todos nós, bem arreigados em "familiares do Santo Ofício" que nunca deixámos de ser, por mais que, terminado o "passa-culpas", protestemos a nossa devoção à liberdade e à tolerância política e cívica.
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Um dia alguém, sem pré-aviso, esgravatará mais fundo do que a lia da memória lusa e soerguerá o espelho dessa nossa identidade "bufa" (em mais de um sentido). A imagem será horrível.

sábado, 7 de agosto de 2010

Um bocadinho de gozo privado depois de uma indigestão de noticiários (vai minha tristeza...)


O Fortuna



As desgraças são como as ondas do mar, aparecem ciclicamente, compactas, alternando com momentos de calmaria e alívio.
Às vezes penso que as pessoas mais velhas do que eu possuem um qualquer detector dessas cadências, e é por isso que encaram com menos ansiedade as calmarias e com mais resignação a turbulência. Às vezes penso que um dia acertarei com o ritmo (será isso que se designa por biorritmo?), não baixarei a guarda tanto nuns casos, não serei tão inconscientemente feliz, e não sofrerei tanto, não experimentarei o sentimento de desorientação e de afogamento nos outros – e não envenenarei tanto a existência com esta suspeita diabólica, esta ansiedade, de que posso estar exposto, eu e quem eu estimo, a uma acumulação descontrolada de infortúnios que podem estar a avançar – e de que desgraçadamente se multiplicam já tantos prenúncios em redor.
Curiosamente, não creio que nada disto possa resolver-se por uma capitalização de sabedoria, por um serenamento induzido por leituras ou exemplos. Há algo de misterioso neste acaso, e não deve ser menos misteriosa a forma como se adquirem as necessárias defesas. Deve ter algo a ver com fé.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Reflexões twitterianas (10 / 10)

Ao tom da Helena Matos: Michelle Obama mandou fechar Marbella para lá se festejar o encerramento de Guantánamo?

Reflexões twitterianas (9 / 10)

Portugal é o 3º da EU em precariedade. Somos grandes! Mas ainda havemos de arranjar maneira de fazer com que os precários sustentem, através do admirável "pay-as-you-go", a reforma dos efectivos que se entricheiraram nos seus "direitos adquiridos" para lixarem os precários (uma reforma que, por sua vez, novamente discriminará contra os precários).

Reflexões twitterianas (8 / 10)

A Rainha de Inglaterra tem um legião de podengos que larga aos faisões e aos patos lá nas charnecas de Balmoral. Por cá o Sr. Procurador Geral larga o lobby coimbrão quando se sente acossado.

Reflexões twitterianas (7 / 10)

CMVM vai supervisionar (eufemismo para "tentar calar") as agências de "rating". Engraçado seria se pudesse mesmo fazê-lo. Lembra a Nova Zelândia e o seu pioneirismo na abolição da experimentação laboratorial em primatas – coisa que não existia na Nova Zelândia…

Reflexões twitterianas (6 / 10)

Sou a favor da abolição dos chumbos nas escolas. Só assim as adequamos a uma sociedade em que o mérito é raramente critério. Mais precisamente: ter-se sido bom aluno tornou-se uma irrelevância em Portugal, uma bizarria de tom narcísico.

Reflexões twitterianas (5 / 10)

UNESCO classifica mais 21 bens como "património mundial". É aos magotes! Desde já declaro o desinteresse do Ashram em tornar-se mais um membro desse património "descarrilhado".

Reflexões twitterianas (4 / 10)

Um jovem representante de uma organização imaginativamente designada por "Passmúsica" assevera que "tem que haver respeito pelas pessoas que fazem música". Eu concordo, e começaria pela abolição destas organizações parasitárias ditas de "gestão colectiva de direitos"…

Reflexões twitterianas (3 / 10)

Portugal vai proibir a expansão do Street View do Google Maps? Além de darmos uma bela imagem ao mundo, vamos pôr toda a gente a imaginar o que é que andamos a fazer que não queremos que se saiba (e que se veja)…

Reflexões twitterianas (2 / 10)

Vai acabar o desemprego? Se vingar a proposta de se garantir emprego às vítimas de violência doméstica, desata tudo à porrada lá na barraca e temos o problema resolvido!

Reflexões twitterianas (1 / 10)

Como deixei de seguir as notícias (o Ashram tornou-se uma zona livre de notícias, como outrora Alhos Vedros era uma zona livre de armas nucleares), hoje compraram-me dois jornais e eu empanturrei-me.

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